Olá!!!
Tem umas coisas me inquietando aqui dentro da cabeça e preciso dividir com vocês, vou contar uma história, uma parte da minha história.
Bem, um dia eu nasci. Não sei se o dia era lindo, se fazia
um calor de rachar como é costumeiro em dezembro ou se os efeitos do El Niño,
La Niña ou qualquer outro fenômeno climático já se fazia presente naquela segunda
feira de 1979.
Só sei a história que ouvi de minha mãe, de minhas tias e
das mulheres da minha vida, porque fui criada por mulheres, mulheres negras.
Romanceada ou não, não importa, é o meu mito de nascimento,
todo mundo tem o seu, mas o que importa é que nasci.
Nasci numa tarde ensolarada, depois de um dia de caminhada
da minha mãe, numa maternidade na Penha Circular, pelas mãos do dr. Levi.
Quando nasci, uma das primeiras informações que minha mãe
teve sobre mim, depois dos cuidados médicos, era de que eu teria pouco cabelo
ou quase nada.
É, isso mesmo! Parece mentira, parece irrelevante, mas foi
isso, a enfermeira disse a minha mãe, “mamy”: “Coitadinha da sua neném, ela não
vai ter cabelo, só tem um pouquinho no
alto, tem muita entradinha...” Pois é, a
pseudo-vidente disfarçada de enfermeira sentenciou isso!
Minha mãe, desde nova muito combativa, mesmo naquela
situação, disse a tal enfermeira: “Você está maluca, minha filha vai ter muito cabelo
sim! Sai pra lá!”E essa é uma das histórias sobre o meu nascimento.
Hoje, é óbvio dizer que minha mãe estava certa e a
enfermeira não era bem maluca, o nome daquilo era outra coisa. Hoje, e ao longo
da vida, todo o universo pôde ver que eu tenho muito cabelo, graças as Deusas,
cheio e que cresce bastante.
Mas,vamos lá... toda
criança nasce quase sem cabelo ou mesmo careca, por quê raios aquela mulher
disse que EU, logo Eu não teria cabelo? Vou deixar a pergunta no ar por
enquanto...
Eu falei cedo, andei cedo, fui pra escola cedo e nas histórias
que me contaram, eu era a criança que falava direitinho, precoce, inteligente,
etc. Gostava que lessem pra mim e aprendi a ler cedo para aquela época, com
cinco anos. Minha mãe, muito caprichosa, sempre me penteava com belas tranças,
minha Dinda me presenteava com acessórios bonitos e coloridos de cabelo, minha
avó não permitia que eu andasse de chinelo “havaianas”, porque naquela época
havaianas não era “cool” como agora. Meu primo me chamava de Garotinha de
Ipanema e trazia coisas novas pra mim do seu trabalho lá na Zona sul.
Não, eu não quero parecer arrogante, nem ostentar, que é a
palavra do momento. Quero perguntar o que vocês acham que acontecia nessa
família, da Baixada Fluminense, formada por minha mãe, minha avó e minhas tias
e que cuidava tão bem de mim? Será que tinha algo de errado???
Não! Nada de errado, devo a elas minha educação, minha base
moral e muito mais. A mulher que sou hoje, devo a essas que me criaram.
Continuo minha história...
Eu fui criada para ser a melhor, eu tinha que ser a menina
que fala certo, eu tinha que ler, eu tinha que ser inteligente e era adiantada
dois anos no colégio particular onde estudava. Com 9 anos eu já estava na 5ª
série, hoje 1ª ano do segundo segmento do ensino Fundamental. Meu uniforme era
impecável, o material escolar idem, eu tinha bonecas incríveis, muitos
brinquedos, eu tinha muito mais do que minhas coleguinhas tinham, era a princesinha
da rua...
[Veja bem, o que vem a seguir vou dizer com cautela, porque
nem todo mundo que vive ou viveu essa realidade está calcado nas mesmas bases,
porém esse é um fenômeno que se aplica a muitas famílias negras que conheço,
basicamente de todas as minhas amigas negras...]
Sabe o que também acontecia? Se alguém “implicava” comigo na
escola me chamando de “macaca”, de “girafa
preta” (pq eu era alta), de cabelo de Bombril, ou de balde de piche eu não
tinha consolo nem na escola, nem em casa. E ouvia, “não liga, não se misture,
vc não é nada disso, vc é muito melhor”. “fulano diz isso mas vai mal na
escola, beltrana diz aquilo mas a mãe não liga pra ela, vai toda amarrotada”, “ciclana
não sabe nem ler direito”.
Como se o fato de ser bem cuidada amenizasse todo o
sofrimento, veja bem, eu fui uma criança pobre, da Baixada, mas naquela época
não se podia ser pobre como todo mundo, eu não tinha esse direito porque
queriam o melhor pra mim e também porque eu era negra, então eu tinha obrigação
de ser a melhor, de ser a arrumada, de ser letrada, de estar dois passos (ou
duas séries, como era o meu caso) à frente, para parecer igual, mas isso não
funcionava. A hora do recreio estava lá e não me deixava fugir.
As mulheres da minha vida só queriam me proteger, talvez não
quisessem revelar o racismo assim, essa ferida na carne presente. A palavra que
eu uso para essa implicância ou bullyng, nomeio de escarnecer, tirar a carne.
E apesar da lição implícita de proteção das minhas “mais
velhas” ser: “Você precisa se destacar para passar despercebida”, essa era uma
lição fadada ao fracasso, não adiantava me destacar e ser bonitinha,
arrumadinha, inteligentinha.
Foi assim que na adolescência comecei a me dar mal na escola
e sofrer duplamente, porque agora eu nem conseguia me destacar nos estudos pra “fugir”
daquela realidade. E a realidade da qual eu precisava fugir era “ser negra”.
Eu não queria mais aquele cabelo, nenhuma amiga usava
trança, trança era coisa de criança, mais do que isso, trança era coisa de
negra, eu não fazia esse raciocínio na época, mas como poderia dizer que não
era isso, sabendo o que sei hoje. Sabendo como os padrões de beleza e estética
são lisos, louros e longos?
Eu usei químicas no cabelo, torrei o couro cabeludo tentando
entrar no esquema das meninas da minha idade, ter um cabelão, meu cabelo sempre foi um cabelão, queria jogar
as madeixas, ter namoradinhos, sair...
Bem, a princípio as químicas da época alisavam, mas não
deixavam com um bom aspecto, era só um cabelo esticado e dava um trabalho
danado, depois de passar um tempo no salão para usar algo com soda cáustica no
cabelo e ele ficava esticado, sem graça, nem forma. Sem falar que é bem estranho,
uma negona como eu com o cabelo “boi lambeu”. Falta algo, eu já sabia, mas o
que eu poderia fazer com aquele cabelo que gritava quem eu era? Eu calava minha
origem com química.
Depois, algumas novidades chegaram ao Brasil, permanentes
afro, americano, relaxamentos e nessa onda foram 17 anos da minha vida, a
metade da minha vida entre permanentes e relaxamentos, mais 3 com alisamento,
ou seja, 20 anos dizendo que minha identidade devia ser “domada”, “alisada”, “normatizada”.
Vinte anos reforçando aquela história que aprendi lá na
infância, que eu tinha que tentar me encaixar. Mas por que será que eu estava
de fora? Por que eu era assim tão diferente? E por que o diferente tem que ser
assim rechaçado?
Passei uma vida inteira tentando resolver essa inadequação,
de uma forma ou de outra. Mesmo com toda consciência política, estudei em Pré
Vestibular para negros e Carentes e aí comecei a criticar essas questões, mas
no primeiro período da faculdade, quando uma aluna copiou questões da minha
prova e o professor de Antropologia “entendeu”
que eu que havia plagiado as respostas descontando os pontos da minha prova e
não da dela, sem nunca ter me perguntado o que houve, eu não achei espaço para
gritar pelos meus direitos e deixei pra lá, já tinha passado, o professor tinha
viajado, a pontuação deu pra não reprovar e eu deixei lá no cantinho.
Obviamente a aluna era branca, loura por sinal.
Hoje eu agiria de outra forma, mas foi uma longa estrada até
aqui, de dissabores, desamores, um desamor principalmente a mim mesma, do meu corpo que eu tinha vergonha, por ser
bunduda, cadeiruda, do cabelo que era “alto” demais, da voz que tinha que ser
baixa, do sorriso que não podia mostrar todos os dentes, do desejo que tem que
ser recatado, a própria vida que nunca é a mais importante...
E é assim que eu, que nós, mulheres negras, vamos nos
anulando, que vamos ficando perdidas nesse racismo que não é só do outro, é
também nosso, está arraigado dentro de nós, que critica primeiro a nós mesmas e
nossos pares mais próximos, que cerceia nossa liberdade de apenas ser.
Libertar o cabelo e o corpo não é apenas uma questão
estética, nem é uma questão panfletária tão pouco. É apenas dar liberdade pra alma, é libertar
as amarras de tanto racismo, esse sentimento suicida que nos mata por dentro e
nos impede de enxergar a si e ao mundo de uma maneira mais inteira.
Portanto, seja livre pra ter o cabelo que quiser, apenas não
se iluda achando que a beleza é ingênua. Desconfie de si mesma e pergunte por
que a beleza está de um lado e não do outro e por que é preciso escolher um
lado em objeção ao outro?
Reconstrua sua história, questione, revisite seus mitos
pessoais e aprenda com eles. Eu sei que às vezes é preciso ser fênix e se
reconstruir das cinzas, mas sei também que a beleza dessa transformação é algo que
ninguém pode me tirar, porque ninguém me contou, eu caminhei cada passo e hoje sei que sou como sempre fui: bela por inteiro.